Críticas
Hélio Oiticica (1967)
As criações de Solange Escosteguy
O requinte geralmente emprestado às confecções femininas em geral, pelos costureiros, reside na adaptação à idéia geral das mesmas de materiais caros, de luxo, que fazem com que valham mais, ou menos, conforme o caso. Para Solange Escosteguy porém esse requinte não
está forçosamente ligado ao preço do material, mas às suas idéias plásticas de desenho e cor. Solange não se quer deixar enfeitiçar pelos excessos, pela aplicação sobre a idéia de enfeites extra-confeccionados, mas quer que a própria forma, o corte geral de cada peça, nasça de uma só idéia, que se prolonga na confecção total, completando-se com o desenho contínuo e a cor, sempre altamente plásticos. Isso decorre de um dom inato na artista para o desenho, para a linha, que se desenvolve aqui, em cada nova peça, com uma riqueza inventiva muito grande.
As formas nascem de um modo contínuo, envolvem-se topologicamente por toda a peça, e surgem então as aparências mais inesperadas: são como que formas vegetais surgidas do âmago da natureza, como que sugeridas por vegetações tropicais, por vezes carregadas de certa dose de vivências subjetivas, o que lhes empresta um caráter estranho,
por vezes insólito. Isso, porém, de modo muito sutil.
Solange é, na verdade, antes de mais nada, pintora; eis porque suas concepções plásticas vêm, também, como não poderia deixar de ser, impregnadas desse subjetivismo, mas sempre traduzindo-se em idéias plásticas, em linha-forma-cor.
Ao criar, desde princípio de 66, seus primeiros objetos (a que designo como anti-caixas e supra-relevos), não houve qualquer quebra ou descontinuidade entre as duas atividades. Passa ela de uma a outra,
como se isso enriquecesse e desse expansão ao seu desejo incontido
de se expressar mediante a cor e a forma, que se erguem, a cada
nova obra, em novas proposições. Nas roupas, dá forma a um
sentido decorativo inato, de uma clareza matisseana, de uma
robustez plástica impressionante: a cor, decorativa, vibra por vezes
em tons surdos mas sempre de natureza interior, que se acrescenta
à vibração inerente à cor, na origem.
Quando cria então seus primeiros relevos (ou supra-relevos), estes são como que um prolongamento desta primeira atividade - procura ela dar então uma estrutura puramente plástica às suas idéias anteriores, que fluem organicamente, como uma necessidade. Vai direto ao relevo-caixa, onde a forma de tronco trapezóide, logo no primeiro, é como que desmanchada virtualmente pela pujança da forma-cor que a envolve.
Eis porque, ao se repetir de modo contínuo essa quebra de volumes, essa construção e reconstrução dos volumes pela forma-cor pintada continuamente sobre a superfície transformando-a topologicamente, que nasce então um conceito a que chamei de supra-relevo ou anti-caixa ---->
a caixa aqui é relevo, mas deixa de ser 'forma-caixa' porque a artista não está preocupada querendo esquematizar a idéia construtiva na caixa,
ou na sua forma, mas quer, com isso, criar uma ambivalência entre forma-cor e espaço e a forma-caixa ou relevo, onde a visão continuamente flua para dentro, para fora, por trás, pela frente.
Para isto usa a cor em toda a sua vibração, de modo altamente decorativo, onde transparece toda a sua alegria de criar, que é, a meu ver, o mais importante da sua atitude frente às solicitações criativas.
Penso por vezes em Sophie Tauber-Arp, só que em Solange, o
idealismo que era o da pintora suíça é aqui, no seu tropicalismo inevitável, uma disponibilidade da criação, que flui, e se transforma
em vestimentas estranhas, em relevos inesperados, numa geometria realmente fascinante.
Suas roupas não são portanto meras criações para moda ou conseqüência desta; são criações de uma artista que se começa a desenvolver, e resultam em confecções 'sui generis', moderníssimas, onde a personalidade plástica da artista aparece com rigor, exigindo, quem sabe, de quem as veste, uma forte personalidade também.
Para apresentá-las um simples desfile não interessa, mas apela-se aqui para o 'happening', o que é no ramo coisa nova; assim, creio eu, poderão ser apreciados dentro de seu 'habitat'. Aliás, no primeiro desfile organizado por Solange numa Feira Industrial, os modelos carregavam caixas, de modo muito original e simbólico; logo após,
tais caixas passariam a expressar o contexto estrutural principal dos
seus primeiros 'supra-relevos'. Nos próximos desfiles pretende ela desenvolver essa idéia do 'desfile-happening', talvez, quem sabe,
contando com a colaboração de outros artistas, criando um ambiente especial onde possam ser valorizadas e apreciadas suas confecções.
O mais importante é ter-se em mente que não há desligamento
algum entre suas atividades: se numa poder atingir problemas mais profundos e universais (supra-relevos, etc), na outra (confecções de roupas) consegue exercitar de modo livre o principal para um artista criador: a sua disponibilidade criativa, que não é renegada, então, para uma atitude esteticista, mas mantida, renovada, fluindo livre como o sangue no corpo - é o próprio impulso vital indispensável
a cada nova obra ao ser ela plasmada objetivamente.
Mário Barata (1974)
Uma arte mediterrânea, de sol e cor, ressurge nas anti-caixas e no artesanato elaborados por Solange Escosteguy. As primeiras fazem ressaltar o vazio de fôrmas do imponderável, abertas e em esperança. Hélio Oiticica batizou-as apropriadamente com o nome em que o 'anti' de moda, no caso, profundo e misterioso, se instala adequadamente ao romper com o volume fechado que caracteriza a essência das caixas.
Projeções ou prolongamentos tridimensionais aparecem em algumas peças, enriquecendo a sua visualidade, cuja cor vibrante
é um horizonte de Pasárgada : a terra do sonho. Essa cor revive nos 'panneaux', vestidos e almofadas, invadindo o útil com sua beleza, ao mesmo tempo e dialeticamente dionisíaca e apolínea. Uma artista prossegue assim, incansável e delicada, em sua obra - a sua obra.
Pedro Geraldo Escosteguy (Brasil,1974)
Desde 1964, após uma série de experiências com a cerâmica, Solange fixa sua atenção no espaço e na cor. Nessa época, manifestações brasileiras e internacionais punham em dúvida a excelência das proposições chamadas abstratas, e que, com pequenas variantes, reduziam-se à mera reprodução de esquemas tachistas ou à exacerbação de propostas informais, baseadas na textura, nas transparências ou no aproveitamento total da tela em exercícios semi-automáticos sobre o cavalete.
À margem de tendências que se chamaram Pop, Op, Arte Conceitual, e entre grafismos, agressões à própria tela, e tantas outras manifestações de menor importância, seja pelos excessos, seja pelas facilidades, teve Solange a prudência e a intuição de sentir que era no centro de seu trabalho que estava o cerne em que insistiria em suas pesquisas, o núcleo que sustentaria seu espírito criador.
Primeiro na Bienal da Bahia de 1965 e logo como participante
de Nova Objetividade Brasileira, utilizou como suporte a simplicidade volumétrica de caixas em cuja epiderme elaborou, com tintas pigmentares definidas, desenhos que alteravam sua arquitetura neutra. Dessa forma, além da frialdade do suporte empregado, imprimiu-lhe uma segunda natureza, de caráter dinâmico, acentuadamente mais rica, e além disso recuperou num traçado geométrico de grande potência o fenômeno cromático, já insistentemente tratado por outros no desenvolvimento da arte abstrata. Foi tão marcante sua colaboração que teve de Oiticica, na falta de outra expressão mais adequada a esse tipo de elaboração, a designação de anti-caixas. É que Oiticica percebeu o que se manifestava naquelas experiências, mas se deteve com certo excesso no detrito do suporte praticamente destruído pelo vigor
do traçado conseguido.
Estas duas experiências que considero fundamentais no desempenho do trabalho de Solange descortinaram-lhe um caminho e, certamente, uma convicção. Vivendo muitos anos em centros de arte europeus, teria sido muito fácil substituir as primeiras tendências de seu projeto por dezenas de outras sugestões que cresciam na crista das obras de vanguarda, alimentadas pela teoria da informação.
Se, na verdade, a Mec-art, a arte selvagem, os novos realistas
ou a guerrilha pictural acenavam com inúmeras possibilidades aos jovens artistas que então emergiam, era evidente o confronto com o fenômeno hippy, o viver perigosamente, a arte psicodélica, entre outros comportamentos alienantes da difícil realidade.
Dialeticamente, deveriam subsistir grupos de resistência, dramaticamente isolados, que assumiriam a legitimidade dos eventos construtivos de uma arte contemporânea adequada aos interesses de integração em todas as facetas da modernidade. É como componente autêntica desses grupos que se afirma a criatividade de Solange, não só tecnicamente instrumentada, mas , portadora de uma visão antidiscursiva, propícia à comunicação direta, de caráter sensorial.
Suas experiências passam pelo desenho no papel e no pano, exercitam o corpo humano como possibilidade de expressão compatível com a sensibilidade de gerações atuantes, e volta
ao suporte de madeira, enriquecida com os resultados obtidos.
Poeta, não utilizou a palavra para se expressar. Mas conhecedora profunda dos mistérios da composição soube discernir e concatenar no seu caminho plástico as características de sua personalidade, com a manipulação desses segredos.
É certo que não utilizou cálculos científicos, que esfriariam sua arte, mas como uma alquimista das cores usou o preto e o branco para conseguir aquelas tonalidades contrastantes indispensáveis para atingir a meta que há muitos anos vinha elaborando. Eis que, depois de tão variadas manifestações sente que é na articulação e na desarticulação do suporte que poderia encontrar a plenitude dos seus objetivos.
É na madeira, pois, onde inventa volumes que se agitam de maneira intencionalmente desequilibrados que agora levanta a síntese de sua pintura retilínea. Das leis da composição clássica pouco sobra, pois sua obra consiste em restituir à globalidade da mesma um tipo de equilíbrio informal, crescido entre volumes aparentemente incompatíveis com esse equilíbrio, mas onde circulam linhas de atração e repulsão que se conciliam harmonicamente no conjunto.
Não trabalha, como os antigos autores, com um único centro de equilíbrio, mas com a tensão emanada de múltiplos centros que funcionam na globalidade da composição.
Cada construção, como denomina seus novos trabalhos, tem seus centros de equilíbrio tanto distribuídos no primeiro plano como nos planos posteriores da mesma concepção, e, num processo laborativo absolutamente novo, estes centros de equilíbrio se unificam, ora na própria obra, ora no espaço circundante em que se integra com naturalidade.
Qualquer texto de composição afirma que as linhas oblíquas determinam instabilidade e irritação psíquica. Nas construções de Solange, dotadas de um horizonte mental, as perspectivas obliquadas, os espaços vazados, a dimensão ou o peso de cada segmento unem-se num centro iso-dinâmico espacial, apenas matematicamente discernível, cuja descoberta sustenta a Construção como um todo repousante.
Não é, quero anotar, um pique de esticismo: nesse conjunto
em que nenhuma cor, volume, linha ou vazado transgride o projeto da Construção, espelham-se, com tranquilidade, as contradições da vida moderna. Comparável com um poema bem realizado em que nenhuma palavra é supérflua, e do qual nada se pode tirar, cada Construção de Solange é um bloco definido de sensibilidade e expressão. Arte concepcional por excelência, seus trabalhos refletem a vitalidade do novo e a emancipação de todas as correntes que tentaram, sem êxito, arte tão séria e concreta.
Maria Luísa Torrens (Uruguai, 1984)
El problema dinámico con el que desafia al espectador, Solange Escosteguy, obliga a una revisión de las coordenadas perceptivas tradicionales y se compensa con la vitalidad cromática, y la brevedad y sensibilidad que susurran sus sutiles transparencias. Hay una propuesta en la última producción de Solange Escosteguy por explorar las nuevas relaciones espacio-temporales que son un desafio para el hombre de fines del S. XX.
Elisa Roubaud (Uruguay, 1984)
Las esculturas de Solange Escosteguy resultan una proeza como intervención de la materia. Algunos ejes atraviesan, sostienen cuerpos de papel maché densos, texturados y enriquecidos por el contacto de lijas y manos que van llevando los tonos y las pátinas
a esa compleja amalgama de materia y color. Las formas que consigue al equilibrar pasta de papel y fuerza de gravedad se elevan caprichosas en el espacio, o dejan caer el peso engañoso
de un material esencialmente liviano, con aparencia de roca, piedra, lava incandescente. Estas obras son la etapa actual de una larga trayectoria que comenzó con objetos realizados en 1967 en la Nueva Objetividad, o en el Desfile Happening que hizo la artista en el Museo de Arte Moderno de Rio de Janeiro, en el mismo año, ambientado en Tropicalia de Helio Oiticica.
Maria Luísa Torrens (Uruguai, 1984)
El problema dinámico con el que desafia al espectador, Solange Escosteguy, obliga a una revisión de las coordenadas perceptivas tradicionales y se compensa con la vitalidad cromática, y la brevedad y sensibilidad que susurran sus sutiles transparencias. Hay una propuesta en la última producción de Solange Escosteguy por explorar las nuevas relaciones espacio-temporales que son un desafio para el hombre de fines del S. XX.
Elisa Roubaud (Uruguay, 1984)
Las esculturas de Solange Escosteguy resultan una proeza como intervención de la materia. Algunos ejes atraviesan, sostienen cuerpos de papel maché densos, texturados y enriquecidos por el contacto de lijas y manos que van llevando los tonos y las pátinas
a esa compleja amalgama de materia y color. Las formas que consigue al equilibrar pasta de papel y fuerza de gravedad se elevan caprichosas en el espacio, o dejan caer el peso engañoso
de un material esencialmente liviano, con aparencia de roca, piedra, lava incandescente. Estas obras son la etapa actual de una larga trayectoria que comenzó con objetos realizados en 1967 en la Nueva Objetividad, o en el Desfile Happening que hizo la artista en el Museo de Arte Moderno de Rio de Janeiro, en el mismo año, ambientado en Tropicalia de Helio Oiticica.
Fernando López Lage (Uruguay, 1984)
Interferências
Desde 1966 Solange Escosteguy vem produzindo objetos em
que a forma e a cor são tópicos que traduzem suas idéias sobre
as diferentes interferências no espaço. As peças apresentadas
têm um caráter singular, entre o vegetal e o zoomórfico, como que surgidas da natureza ou de paisagens interiores. O corpo poderia ser o causador do movimento das obras.
Sua estratégia é a de um escultor: é sempre importante a projeção das sombras, o equilíbrio e a interferência da artista no espaço - neste caso, as paredes da sala de exposição.
Os outros trabalhos que compõem a exposição são tecidos
de chiffon de seda pintados com cera, guta e tintas, e têm um caráter mais funcional. Tecidos desenhados para serem exibidos sobre o corpo interagindo com o meio. Solange Escosteguy
nunca encontrou a relação entre a indústria da moda e
suas peças.
Esses tecidos ou os vestidos que faz (em que o desenho geométrico importa mais que o corte) têm vínculos mais antropológicos e também mais artísticos. A autora concebe-os como peças de arte atemporais. Pierre Bordieu diz em "A distinção - critérios e bases sociais do gosto" que "as incessantes transformações da moda são parte da transação objetiva entre, de um lado, a lógica das lutas internas no campo da produção que se organizam segundo a oposição entre o caro e o (relativamente) barato, e entre o clássico e o prático...".
Longe dos parâmetros classistas da roupa como objeto exclusivo, de bom gosto, Solange Escosteguy utiliza o corpo
de suas eventuais modelos como formas indispensáveis
para a engrenagem de seu sistema.
Em 1967 realizou um desfile ambientado pela 'Tropicália" de
Hélio Oiticica: o sentido de "happening" invadia seus vestidos
e a geometria estruturava novamente a roupa-objeto. O percurso por esta exposição é um caminho por uma zona silenciosa: um impulso vital que se traduz em forma, cor e movimento.
Amalia Polleri (Uruguai, 1985)
No le basta a Solange Escosteguy la ruptura sustantiva del soporte. El contenido geométrico desata tensiones que la amazona Escosteguy domina y maneja en amplios planos de color con
riendas de lineas de grosores distintos, que se contraen, se superponen y desfasan creando falsos espacios perspectivos. Asimetrías, repeticiones irregulares e invasiones de forma y color, crean focos de singulares entrecruzamientos, cuyo lejanísimo antecedente encontramos en ciertas figuras futuristas de gran dinamismo y, más cerca, en la batalla geométrica que
desencadenan algunos concretistas (...)
Hugo Auler (Brasil, 1974)
Arte e artesanato de Solange Escosteguy
A Múltipla Galeria de Arte está apresentando uma exposição original, como seja a da arte e do artesanato de Solange Escosteguy, uma artista de vanguarda que tem o mérito de encontrar as mais audaciosas formas de expressão para o seu poder artístico de criação.
Na mostra em comento não está apenas a confirmação do princípio enunciado certa vez, por Henri Bergson, segundo o qual todo grande artista há de ser um grande artesão, visto como está também a revelação da forma pela qual Solange Escosteguy, ao fazer obra de artesanato, faz obra de arte, e, ao fazer obra de arte, faz artesanato. É a artista e a artesã que se confundem, que se conjugam, que se unificam em qualquer uma daquelas manifestações, nas quais a criatividade tem a seu serviço uma perfeita técnica de execução.
Por outro lado, diante dessa exposição, de alto teor, formada indisciplinadamente por anticaixas, vestidos, almofadas e panneaux, podemos, em verdade, concluir que, no momento, não há como negar que a arte não extrapolou apenas as categorias tradicionais; mais do que essa extrapolação, que hoje em dia não sofre qualquer contestação, nós nos perguntamos o que deva ser, na hora presente, a noção de obra de arte de criação artística, ou mais exatamente, o que é e o que não é pintura ou escultura. Uma conclusão está, entretanto, a impor-se, qual seja a de que a pintura e a escultura estão perdendo, dia a dia, o caráter de exclusividade. A pintura não está mais restrita ao cavalete e ao mural, desde o momento em que passou a ser elaborada sobre prancheta, em suportes mais provocantes, seja em objetos, seja em tecidos destinados a panneaux e a roupagens.
Por sua vez, a escultura vai deixando de ser a clássica arte de esculpir na madeira, na pedra, no mármore e, quando não, no barro e no gesso para efeito de fundição; a obra escultórica passou a compreender até mesmo o agenciamento dos mais insólitos materiais, em cuja organização a pintura não deixa de ter a sua participação.E daí, o surgimento de pinturas/esculturas e de esculturas/pinturas que envolvem um problema filosófico e uma questão de criação, artística e da técnica da execução. Como bem o diz Marcel Brian, a história da arte de nossos dias revela que as codificações tradicionais não têm mais capacidade para disciplinar a absoluta novidade das investigações a que se entre o artista criador, tanto no domínio da pintura como no domínio da escultura, as quais tendem, de parte a parte, a reunir-se, gerando confusões.
E Solange Escosteguy, sem que haja tido essa percepção, vem provar essa confusão na área da criação artística ao aplicar a pintura em suas anticaixas que, por sua vez, já se aproximam da escultura quando resultam de agenciamento de elementos formais, bem como em suas roupagens que passam a ser esculturas/pinturas em movimento.
No processo da criação das anticaixas, essa artista executa objetos que poderão ser codificados como esculturas, se entendermos que assim devam ser consideradas todas as obras de arte que resultem daquele agenciamento, atingindo a tridimensionalidade. Mas, ao fazê-lo, recorre às superfícies pintadas a fim de dar às suas criações uma expressão plástica e pictural. As suas anticaixas são constituídas por perfeitas estruturas, a lembrar o concretismo, as quais estão a impor-se pela riqueza e harmonia das formas, equilíbrio da superposição dos planos e a colocação de vazamentos, através dos quais a luz exerce um papel fundamental, principalmente quando cria passagens de gamas tonais de branco e estabelece sombras, organizando formas que, posto previstas, não foram objeto de execução.
A incidência da luz funciona como genetriz de formas, algumas vezes originando perspectivas através de decrescentes repetições. Estamos, pois, diante das esculturas/pinturas, nas quais a construção dos volumes, dos planos, das massas e dos vazamentos, reveste de caráter cinético as composições. Ademais, a possibilidade das anticaixas oferem na sua unidade ontológica as mais diferentes formas, dependendo do ângulo de percepção visual, [o que] permite que essas obras tenham oticamente as mais variadas estruturas dentro de sua única estrutura material.
A nós parece-nos que Solange Escosteguy, ao recorrer à criação das anticaixas, pretendeu libertar-se dos limites bidimensionais da pintura de cavalete e, ao atingir a terceira dimensão, permitiu que as suas obras fossem visuais e tácteis, provocando o interesse do espectador no encontrar, não encontrando mais do que formas que vêm da matéria, da cor e, principalmente, da luz – um elemento plástico não-táctil que se integra nas estruturas posto que não existam objetivamente.
Já em suas roupagens, logo se afigura a intenção mais nítida de participação. A escultura/pintura é o próprio corpo da mulher que, ao vestí-las com seus desenhos a cor, pintados após a respectiva confecção, participa fisicamente de uma obra de arte que se movimenta ao sabor de suas articulações naturais , dando-lhes uma expressão corporal. Temos, para nós, que, sob esse ângulo artístico e artesanal, Solange Escosteguy atingiu o fim a que se propôs: conjugar a pintura e a escultura a exigir da mulher, mais que a participação, sua integração em obras de arte.
Finalmente, afastadas as almofadas que se restringem à decoração, temos os panneaux que poderão ser codificados como antitapeçarias e como pinturas executadas sobre o pano que, destarte, passou a ser um novo suporte para essa forma de expressão. E sob esse aspecto, Solange Escosteguy, no registro da corrente estética do abstracionismo geometral, uma tônica dominante em todas as suas obras de arte e artesanato, revela sua mestria no desenho, na composição e na cor.
Sob qualquer desses ângulos, o que Solange Escosteguy está realizando é um processo válido de pinturas/esculturas, na qual cada vez mais está a impor-se uma arte de integração e participação, que não se restringe ao recinto das exposições e das coleções, por isso que é, também, levada para as ruas. É a comunicação da arte às massas sem tombar na massificação, eis que constituem peças únicas todas as suas composições.
Alicia Haber (Uruguai, 1985)
Fulgor Cromático y Libertad Formal
El arte abstracto no solo plantea interesantes posibilidades combinatorias de formas y colores sino que es vehículo comunicativo de las más variadas visiones del mundo. A través de lo que aparentemente no son más que búsquedas plásticas, el receptor sensible puede percibir alusiones muy diversas.
Enfrentado a los cuadros-objeto de Solange Escosteguy el espectador atento descubre una búsqueda constante por vitalizar la geometría con el empleo de la más variadas gamas cromáticas y con la configuración de estructuras no tradicionales. Descubre, asimismo, una exuberancia colorís tica y una libertad para manejarlas formas que son dos constantes de la producción de la artista brasileña. Advierte, finalmente, que esas características formales transmiten una preferencia existencial por el dinamismo, señalan la importancia de la energía y el movimiento en el mundo contemporáneo y aluden a las complejidades y fracturas de la vida moderna.
Integrante junto a Lygia Clark, Valdemar Cordeiro, Rubens Gershman, Luis Gonzaga, Roberto Magalhães, Glauco Rodrigues, Gastão Manuel Henrique, Helio Oiticica y Antonio Dias del movimiento brasileño de vanguardia “Nueva Objetividad”que rompiera en la escena artística carioca en los años 60, Escosteguy otorgó, como sus compañeros y colegas, gran importancia a esa faz comunicativa de su creación. Cuando rechaza la regularidad, el reduccionismo y el minimalismo proprio de ciertas formulaciones abstractas y geométricas y opta por un colorido intenso y variado y una geometríadinámica el espectador perceptivo intuye que está transmitiendo su atracción vivencial hacia el vitalismo y evidenciando ciertos rasgos de la sociedad contemporánea, la vertiginosidad de los cambios, la definición de nuevas pautas de conducta, la ruptura con los modelos tradicionales.
Por ello en la serie “Fragmentos” que exhibe en el MAC predominan los campos visuales de fuerzas activas, los espacios heterogéneos, el uso intenso de disposiciones asimétricas, los juegos de correspondencias y oposiciones, los efectos de espacialidad logrados con transparencias y contrastes de colores y la perpetua integración del espacio a las obras.
Las oblicuidades, la multidireccional dad y potencia de las formas que parecen superar los límites de las obras y continuar en el entorno espacial, el polifocalismo que crea múltiples puntos de interés visual, las tensiones formales que son elementos esenciales de su compaginación de las superficies, trasuntan dinamismo, discontinuidades, enfrentamientos e interconexiones que son referencias a intricadas facetas del mundo actual.
Sus planteos no se agotan en estos rasgos formales ni en estas connotaciones. Para Escosteguy conquistar el espacio es, sin duda, una finalidad muy importante. A veces lo integra disponiendo un hueco, un vacío; otras veces desestructura el soporte en dos segmentos que se unen por una tercera forma dejando que el aire penetre en la composición; en algunos casos materializa la sensación de continuidad espacial con elementos que salen fuera de los límites del cuadro y en otros la configuración de planos diversos permite lograr interesantes efectos espaciales.
Así, Escosteguy comunica su relación vital con el entorno, la importancia que otorga al vínculo existencial entre hombre y espacio y su interés en las modernas investigaciones que desafían las nociones tradicionales de tiempo y espacio. El color, empleado generosamente según esquemas cromáticos múltiples, también trasmite esa visión energética que Escosteguy privilegia. En algunas estructuras severas y acendradas solo utiliza dos o tres colores que dispone en forma uniforme mientras que en otras composiciones más llamativas emplea transparencias y un cromatismo más libre. Disociando forma y color y contraponiendo colores obtiene, a veces, sensaciones ópticas vibratorias que dinamizan aún más las composiciones.
En la muestra del MAC esta artista brasileña, que también incursiona con éxito en el diseño de telas y la construcción de objetos, muestra las posibilidades expresivas y comunicativas de sus propuestas.
Amalia Polleri (Uruguai, 1985)
No le basta a Solange Escosteguy la ruptura sustantiva del soporte. El contenido geométrico desata tensiones que la amazona Escosteguy domina y maneja en amplios planos de color con
riendas de lineas de grosores distintos, que se contraen, se superponen y desfasan creando falsos espacios perspectivos. Asimetrías, repeticiones irregulares e invasiones de forma y color, crean focos de singulares entrecruzamientos, cuyo lejanísimo antecedente encontramos en ciertas figuras futuristas de gran dinamismo y, más cerca, en la batalla geométrica que
desencadenan algunos concretistas (...)
Mecha Gattás (Uruguay, 1985)
La filosofía de Solange Escosteguy está basada en el concepto
de que la forma democrática se traslada al arte-moda. Sus vestidos, sus chalinas son entonces obras de arte que pasean por las calles. Como grafitis energizados detienen y absorben las miradas de los transeúntes, los aferra a los colores, los encierra en sus estructuras.
Arte en movimiento, arte que sale de los museos, de las
galerías, (…) se libera de un marco y se integra con
alegría y humor a lo cotidiano.
Marcus de Lontra (Brasil, 1989)
Em nome da clareza
Se Ana e Jeannette nos contam histórias sobre os anos 80, Solange Escosteguy nos apresenta outros momentos, outras aventuras. Gaúcha, Solange já morou no Rio de Janeiro, em Paris e Budapeste. Seus relevos revelam uma produção densa, realizada por uma artista madura com pleno domínio dos meios e dos instrumentos conceituais que embasam a sua obra.
Solange iniciou a sua trajetória artística no Rio de Janeiro junto ao grupo de jovens artistas que se reuniam no Museu de Arte Moderna e produziram a mostra Opinião 65, marco da década.
Influenciada pela saudável convivência com Hélio Oiticica, os relevos de Solange concretizam-se no espaço irregular, na
tridimensionalidade, desprezando os limites regulares do quadro. Nesse aspecto, seria importante para se compreender melhor a produção de Solange, a leitura do livro "Aspiro ao Grande Labirinto" de H.O., onde o grande artista e teórico preconiza a morte do quadro como a única salvação possível para a pintura.
Solange, dentro dessa ideologia, cria relevos de belo impacto visual, fazendo com que a obra dialogue com o espaço circundante, recusando qualquer critério representacional. Há, sem dúvida, nela também, alguns referenciais evidentes à pop-art. Creio, entretanto, que as bases reais de sua produção encontram-se nas pesquisas dos anos 50, nos concretistas e neoconcretistas e, indo mais atrás, no suprematismo soviético de Malevitch e no neoplasticismo do holandês Piet Mondrian. O que a artista persegue é a clareza, a objetividade, estruturando sua obra dentro dos postulados da arte moderna pós-Manet.
Profundamente gráfica, os trabalhos de Solange regem-se pela linha, dentro de um universo da abstração geométrica próxima às pesquisas de Abelardo Zaluar, de Wanda Pimentel. Em suas obras não existe espaço para a alegoria, para os investimentos na subjetividade ou na importância temática. Solange cria uma obra que pretende dialogar sobre a própria, e específica, situação do ser da arte no mundo. Ela requer uma situação, uma clareza, uma razão. Certa vez, um importante artista brasileiro, Cildo Meireles, declarou que a questão nacionalista, na arte, a brasilidade, “não era realmente uma questão, e sim uma ânsia”.
Dentro desse raciocínio, poderia se afirmar que o regionalismo é a caricatura dessa ânsia. Solange, artista moderna e esclarecida, sabe que desde 1907 o cubismo já havia destruído o tema. Geométrica, ela se quer do mundo, ela busca uma ordem justificadora e norteadora das ações da arte. Certamente ela concorda com o crítico norte-americano Harold Rosenberg que disse, sobre a questão do nacionalismo em arte, que “é a revolta da geografia contra a história”. Solange orienta e constrói, persegue a clareza. Artista multimídia, ela não se deixa aprisionar pela técnica. Todos os materiais são instrumento de discussão de sua linguagem estética.
Celme Fernandes (Brasil, 1994)
Solange Escosteguy faz parte de uma geração que inaugura nas Artes Plásticas o diálogo da arte com o cotidiano, materializando a preocupação de revolucioná-la a partir de uma abrangência maior das chamadas "artes eruditas" ou "clássicas", assimilando outros materiais e suportes, até chegar à exploração artística das possibilidades do próprio corpo, dimensionando a sua linguagem ao mais simples mas também sutil que é o vestir.
Esta arte revolucionária começa a surgir na década de sessenta com o grupo Nova Objetividade, que contou com nomes essenciais para a formação das novas tendências artísticas no Brasil, e entre eles Solange, que tem mostrado sua obra com toda a sua inventiva de linhas, cores, movimentos e luz, pelos quatro cantos do mundo.
Fernando Moya Escárate (Chile, 1995)
En (…) su primera muestra en Chile, la artista presenta una nueva evolución que, como ella misma señala, obedece a su encuentro con
el paisaje de nuestro país. Utilizando elementos propios de la tierra,
más materiales que ella misma elabora, crea diversos volúmenes a los que incorpora el color mediante la aplicación de pintura acrílica y pigmentos. El resultado es sorprendente, y aunque las formas son claramente abstractas, en ellas es posible reconocer el desierto, la cordillera o
el ventisquero.
Solange Escosteguy (apresentação da exposição Zonas de Silêncio, em Santiago /1995)
Zonas de Silêncio reúne objetos e esculturas feitos nos últimos dois anos. São trabalhos que marcam claramente uma nova fase, centrada no emprego do papel maché e de colagens. A forma, o volume e o movimento se desprendem do papel e se complementam com outros elementos que acrescento, como pedaços de madeira, tecidos, gravuras e fotos. Uma primícia a mais: aparecem referências imediatas ao plano da realidade que nos tangencia, ainda que não se possa falar aqui, de nenhuma forma, de uma conversão ao figurativo.
A cor é ainda o conduto para a exploração da natureza das coisas.
Dá o ritmo e a vida das formas dos trabalhos. Não seria talvez difícil reconhecer nas Zonas de Silêncio reflexos das cores da cordilheira
dos Andes, da terra e das florestas do Chile.
Mas a diferença fundamental em relação aos trabalhos anteriores não está nas cores, na técnica ou nos materiais. Está no processo criador. Trabalhei essas obras de técnicas mistas sobre o papel maché a partir de observações, de memórias, de fotografias das paisagens e da gente que conheci, perdi e encontrei ao longo da vida. É um processo ao revés. Uma investigação dos sedimentos, dos estratos, das cicatrizes. Um revés do parto.
Talvez isso ajude a explicar também as Zonas de Silêncio. São paisagens, cenas e sensações aprisionadas e silenciosas que o olhar investiga e explora, camada por camada. São memória e esquecimento. Encontro e partida. Um pouco do muito que inspira a contemplação do monumento da cordilheira, das geleiras e do mar. Dessa investigação de si mesmo, de nossa individualidade e das paisagens dentro de nós. Aqui, mais importante que a visão é o olhar.
Caio Mourão (Brasil, 2002)
Solange,
Conheço esta moça desde os tumultuados anos sessenta
do Rio de Janeiro. Depois alçamos vôo, cada um para o seu lado, mas de vez em quando nos encontrávamos no mundo lá fora.
Continua sonhando e criançando, é uma menina levada que adorava
o "lá fora", correr, pular amarelinha, olhar as coisas devagar, pensar
nas alturas e no porquê do céu ser azul, e, ainda, tendo o vento
como confidente.
Hoje ela brinca com o que faz, com a força e os sonhos e devaneios da garota que ainda é, e transforma seus trabalhos em delírios coloridos e voláteis, que são pandorgas loucas, sem linha, sem rabiola, ou tornando-se rabiolas mesmo, subindo aos saltos para um azul feito de sonhos. Ascendem e transcendem, eu juro.
Vamos ver, sentir, e quem sabe voar também.
Edgard telles Ribeiro (Brasil, 2006)
Além do objeto
"Heureux qui comme Ulysses, a fait un beau voyage", diz o poeta. Dias atrás também fiz uma viagem - pela obra de Solange Escosteguy, uma viagem no tempo e no espaço. Guiado pela artista, que fala pouco e, com suas pausas, deixa ao visitante o desafio de estabelecer elos próprios com seus quadros e objetos, revi obras dos anos sessenta, quando sua carreira mal principiava, e, fui, devagarzinho, no sinuoso entra-e-sai de quartos, salas e corredores, acompanhando sua trajetória de artista até os dias de hoje. A primeira sensação que me ficou, talvez a mais importante, foi notar a coerência interna dos trabalhos, apesar das inúmeras mutações por que passaram os objetos ao longo do tempo, das caixas às pipas, dos as esculturas, para não mencionar os mais variados tamanhos e formatos em que se apresentam as obras.
A segunda impressão - e corro aqui o risco de emitir uma opinião calcada na mais frágil das percepções - foi constatar a existência, nos trabalhos mais recentes, de uma curiosa volta que a obra deu sobre si mesma, como se, depois de quarenta anos de uma lenta evolução, os objetos e quadros em alguma medida regressassem às suas origens - só que, como Ulisses, enriquecidos pelas inúmeras viagens realizadas.
Solange Escosteguy produz sobretudo objetos. Trabalha, geralmente, em madeira ou papel marché. Segundo sua forma
ou volume, os objetos são dependurados nas paredes ou casualmente pousados no chão. Seja qual for a natureza da obra de arte, contudo, a preocupação da artista é sempre com sua forma ("é a forma que toma conta do trabalho", costuma dizer "e não o contrário").
Graças a isso, os trabalhos permitem uma possibilidade adicional, a da continuação (invisível) da obra em si mesma. Isto porque, sendo o trabalho essencialmente intuitivo, ele quase sempre abre espaços para as parcerias que o espectador deseje realizar com
a artista- se a tanto se dispuser. (O espectador das obras de Solange pode-se permitir muitos luxos, menos um: o da passividade). O trabalho exige um envolvimento, uma reflexão, uma abertura para o mistério. Sem isso as emoções se perdem - e o encanto logo se desfaz.
Nesse sentido, seus objetos, quase sempre vazados, representam formas interferindo livremente em determinados espaços. Dos trabalhos de madeira dos anos 60, com peças que se encaixavam umas nas outras, às obras recheadas por uma geometria de cores puras (uma geometria intuitiva, nunca pré-concebida), é sempre o espaço, real ou imaginário, que está em causa. E é ele, tanto a obra e suas sombras ocasionais, que faz pensar.
O espaço alimentando o pensamento... um espaço tomado por relevos ("sem relevo não há quebra de estrutura, insiste a artista"), convida assim o pensamento a planar sobre a obra, contemplando-a, levando-a rumo a outras direções. Tanto que, ao apontar para algumas de suas obras mais recentes, em cuja superfície surgem fios soltos (como se o próprio trabalho estivesse sendo costurado), a artista comenta: "Nesses novos espaço, nesses encaixes de cores vivas, estou, no fundo, alinhavando meu pensamento". Como as cerzideiras de antigamente, cuja imaginação igualmente fluida ultrapassava com folga as dimensões de seus belos e preciosos trabalhos.
Raphael Fonseca (Brasil, 2019)
Liberdade
Ao percorrer os três andares que compõem a exposição “Liberdade”, de Solange Escosteguy, o espectador talvez tenha a confirmação do elemento que acompanha toda a sua produção: a experimentação com a cor. Nota-se desde a entrada da galeria a parede vermelho-batom que a artista cuidadosamente selecionou para nos recepcionar - essa cor faz um pendant não apenas com o quadro que dá nome à sua individual, mas também se vê refletida em outros trabalhos e nas paredes brancas ao seu redor. A cor, logo, se torna uma discreta iluminação do espaço.
Como a própria artista gosta de dizer, seu percurso vai “da cor à palavra” – e começamos, no primeiro andar, com obras que são fruto da união entre ambas. Nos últimos dois anos, desde que retornou ao Rio de Janeiro, a artista tem se dedicado a pensar trabalhos em que a palavra é lançada como uma semente para o espectador que se torna responsável por vê-la crescera partir de seu próprio repertório. Algumas delas vem de um campo semântico que remete a mensagens explicitamente políticas – como quando a artista escreve “basta”, faz um “X” ao centro da composição e abaixo diz “pazpazpaz”. Outras de suas escolhas soam mais hedonistas, mas são rapidamente negadas – a artista afirma “sorria”, mas pinta sobre a palavra, novamente, um “X”.
Por fim, uma terceira tentativa de agrupar os trabalhos também nota momentos em que frases poéticas estão presentes: “a lua agora vive / na casa onde se mora” - um haikai de seu pai,
Pedro Escosteguy) -, diz um de seus quadros verticais forrado
com acrilon.
Como em tudo relacionado à sua pesquisa, não nos iludamos
com a aparição dessas palavras – seu uso não é ingênuo e todas elas são pensadas milimetricamente. Não à toa, apenas como exemplo, o seu quadro que proclama “liberdade” tem a sua escrita em diversas orientações – conseguimos lê-lo, mas essa forma de escrever pode ser uma metáfora provocativa para a impossibilidade de conseguirmos ser livres. Além da aplicação
das cores, essas telas são superfícies para a experimentação de materiais – plaquinhas antigas de identificação, telas de proteção
e tubos de plástico são alguns deles. Esses trabalhos, portanto,
se misturam com o mundo e negam qualquer leitura de uma pureza da pintura nessa série.
Essa série cria um diálogo interessante com outras da artista incluídas na exposição e vindas de momentos anteriores de sua produção. No segundo e terceiro andares da galeria, vemos tanto algumas de suas “Anti-caixas” – datadas dos anos 1980, mas produzidas desde a década de 1960 -, quanto obras de parede de sua série das “Construções”, da mesma década. Em todos esses trabalhos, não apenas a cor está presente, como também o seu constante desejo de experimentação– as “Anti-caixas” seguem na esteira do questionamento sobre o lugar do objeto na arte contemporânea, ao passo que as “Construções” tensionam os limites da pintura e seus formatos convencionais.
Desde os anos 1960, quando Solange inicia sua pesquisa como artista visual por meio das “Anti-caixas” e das roupas que cria para seus desfiles-happening, a interação ativa do corpo do público se faz presente em parte de sua produção. No terceiro andar da exposição, a artista propõe um trabalho novo em que o público novamente pode interagir – aqui de maneira lúdica, tal qual uma brincadeira de criança ou mesmo os tradicionais jogos das festas juninas. Um panneaux de tamanho grande traz vários buracos e, em cada um deles, uma palavra é escrita – o arco semântico delas é novamente amplo e passa por sentimentos, palavras de ordem e termos que remetem tanto aos direitos humanos, quanto ao fascismo que tem abalado o mundo nos últimos anos. Instalados em uma parede à sua frente, uma nova série de quadros em pequena dimensão pode ser vista como um conjunto de placas que sinalizam caminhos possíveis para um futuro que diariamente nos assusta e se pinta cada vez mais como incerto.
É nesse momento que temos a certeza de que a “Liberdade” pela qual essa exposição e a pesquisa de Solange Escosteguy clama não é aquela das técnicas, materiais e cores do campo das artes visuais – muito mais do que isso, a artista deseja um mundo em que a humanidade possa se enxergar livre por meio de uma sociedade mais igualitária quanto a seus direitos legais, sua distribuição econômica e seu respeito quanto às nossas diversas diferenças culturais e existenciais. Seria isso um dia possível?
Não sabemos, mas enquanto aguardamos a passagem do tempo, a artista acredita no fazer da arte como uma atividade que ainda liberta – e cada um de nós sabe do que gostaria de se ver livre.